Os bens e o sangue – Carlos Drummond de AndradeE virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudoe por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nadae secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferrotaparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,e se irão os últimos escravos, e virão os primeiros camaradas;e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da monarquia,e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino doentio,e o menino crescerá sombrio, e os antepassados no cemitério se rirãose rirão porque os mortos não choram.
O AUÊ! – Grupo de Estudos em Agricultura Urbana da UFMG, que também sedia o Núcleo de Estudos em Agroecologia e Produção Orgânica – NEA/UFMG, manifesta solidariedade para/com os familiares e vítimas do rompimento da barragem da Vale, Mina do Feijão, ocorrido no dia 25/01/2019 em Brumadinho – município integrante da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). É lamentável que, mais uma vez, vidas sejam levadas e territórios sejam destruídos pelo modelo de desenvolvimento econômico adotado em Minas Gerais que privilegia a mineração. O processo de privatização, a impunidade das empresas, a ineficácia de monitoramento e fiscalização por parte do estado de Minas Gerais e a flexibilização dos processos de licenciamento ambiental e da Agenda Ambiental são facilitadores para que esse crime continue se repetindo. Até agora são centenas de mortes confirmadas e pessoas desaparecidas.
Ao longo do desenvolvimento das nossas pesquisas, nossos trabalhos de extensão e participação em processos de ensino e educação dentro e fora da universidade, fomos construindo nosso entendimento sobre o papel da agricultura em nossa região e o potencial transformador da agroecologia alinhada à agricultura urbana e à agricultura familiar. Compreendemos a agroecologia de forma ampliada, sendo uma prática, um campo do conhecimento científico e um movimento político e social, mas também associada à construção de um novo paradigma societário. Para seu fortalecimento na RMBH, percebe-se que existem diversos desafios a serem superados e é necessário fortalecer as experiências e práticas alinhadas a esse entendimento de agroecologia. E ao nos deparamos com situações como o rompimento da barragem em Brumadinho, percebemos que para a construção da agroecologia em nosso território é necessário enfrentar e superar dinâmicas territoriais, políticas e sociais em que a acumulação de capital possui centralidade e que tendem a favorecer uma pequena parcela da nossa sociedade.
Em nossa trajetória de trabalho na RMBH, junto a sujeitos e organizações que constroem e fortalecem a agroecologia, a agricultura urbana e a agricultura familiar neste território, compreendemos que a atividade mineradora em nossa região tem gerado historicamente inúmeros impactos, com destaque para aqueles relacionados à atividade agropecuária e ao meio ambiente. Estudos e pesquisas apontam que desde a década de 70, na RMBH, a atividade mineradora tem ocasionado diversos conflitos, principalmente a partir do impulso gerado pelas exportações de matéria-prima desta época. Desde então, a agricultura tem sofrido com a poluição e contaminação da mineração e com dificuldade de acesso a solo fértil e disponibilidade de água. Além disso, a atividade agrícola tem perdido sua população ocupada, sendo absorvida principalmente pela mineração, indústria e serviços.
Mais recentemente, de acordo com o documento “Avaliação das tendências recentes da dinâmica territorial da RMBH e identificação preliminar das Zonas de Interesse Metropolitano”, elaborado pela UFMG em 2014 (no âmbito da construção do Plano Metropolitano – Macrozoneamento da RMBH), foi apontada uma previsão para a região de Brumadinho e municípios vizinhos de receberem investimentos na mineração de ferro, associados ao recente ciclo expansivo dessa atividade – potencializando ainda mais os conflitos enfrentados pela agricultura. “Apesar das mudanças no cenário internacional, que levaram alguns desses investimentos a serem adiados, há ainda expectativa de significativos investimentos nesta região […], seguindo as serras do Quadrilátero Ferrífero” (UFMG, 2014, p.89).
Fonte: Corpo de Bombeiros/Divulgação
Ainda neste documento, foram apontados 5 importantes aspectos vinculados à crescente especialização dos municípios da RMBH quanto à mineração, com destaque para os municípios impactados pelo rompimento da barragem, sendo:
Sobre-especialização – em um contexto de desaceleração e adiamento de investimentos no setor da mineração, os municípios altamente dependentes do retorno econômico desta atividade, como Itatiaiuçu, podem sofrer com a perda de receitas em tempos de crise;
Recursos humanos e hídricos – a mineração tende a drenar recursos humanos (pela grande oferta de trabalho), e hídricos (pelos impactos sobre áreas de recarga hídrica), afetando particularmente a atividade agrícola e o abastecimento de água pelos seus impactos nos mananciais e nascentes;
Território ocupado – as extensões cada vez maiores dos territórios ocupados pela atividade minerária (em razão do tipo de exploração que exige cada vez maiores áreas, mas também unidades de tratamento de minério e de barragens de rejeito), competem com outros usos do solo (como agricultura, habitação, etc.) e, na maioria dos casos, se sobrepõem a estes;
Grande número de barragens de rejeito – Itatiaiuçu, juntamente com Brumadinho e Nova Lima, abriga o maior número de barragens de rejeito da mineração. Itatiaiuçu abriga 39 barragens sendo 7 de alto potencial de dano ambiental e 20 de médio potencial de dano ambiental. Igarapé abriga 4 barragens de alto potencial de dano ambiental e Sarzedo, 3. Mário Campos e Mateus Leme abrigam cada um 3 barragens de médio potencial de dano ambiental;
Áreas de mineração e áreas urbanas – deve-se pensar que a proximidade da mineração com áreas de expansão urbana não somente têm levado a um crescente conflito pelo uso do solo (na medida em que a atividade minerária leva a uma estrutura fundiária extremamente concentrada de propriedade de grandes grupos mineradores), mas também ampliando o conflito em torno do tripé recursos hídricos x mineração x ocupação urbana. (UFMG, 2014, p.91)
Para além dos impactos ambientais e o número significativo de mortes ocasionadas pelo rompimento da barragem, já foram relatados consequências diretas sobre propriedades e unidades produtivas de agricultoras e agricultores do município, colocando-os em situações irreparáveis. De acordo com as notícias divulgadas, cerca de 350 produtoras e produtores de Brumadinho e municípios vizinhos foram prejudicados pelo rompimento. O impacto do rompimento da barragem sobre a atividade agropecuária desses municípios se dá principalmente pela contaminação do solo e dos recursos hídricos, com destaque para o rio Paraopeba, o que põe em risco o acesso a alimentos saudáveis e a promoção da saúde coletiva, dentre outros aspectos. Muitas unidades produtivas utilizavam esse rio para a irrigação da produção, para a pesca e outros usos, tendo o rio Paraopeba um importante papel no abastecimento de água para a RMBH, assim como na sobrevivência de diversas comunidades locais, sendo que os danos gerados afetam diretamente seus modos de vida por tempo indeterminado. Infelizmente ainda não é possível mensurar o dano total, colocando muitos desafios para o fortalecimento de ações específicas para a agricultura nos municípios.
Vale ressaltar que o município de Brumadinho, junto a outros municípios impactados e/ou ameaçados, possui papel importante no abastecimento de alimentos da RMBH, principalmente de hortaliças, leguminosas e frutas. De acordo com os estudos realizados no âmbito do Plano Metropolitano – Macrozoneamento da RMBH, os municípios de Ibirité, Sarzedo, Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Igarapé, Brumadinho e Betim integram um tradicional cinturão verde da RMBH, com papel expressivo na produção de hortaliças comercializadas via Central de Abastecimento de Minas Gerais – CeasaMinas (UFMG, 2014). Como exemplo, Brumadinho se destaca no fornecimento de acelga, alface, chicória, tangerina, agrião, espinafre, almeirão serralha, couve, lichia, coentro, salsão, mostarda e cebolinha (segundo dados fornecidos pela CeasaMinas, em 2013).
Assim, fica evidente que se deve promover amplo debate sobre os impactos gerados pela atividade minerária na RMBH, assim como sobre alternativas para destinação dos rejeitos da mineração, uma vez que existe uma forte presença dessa atividade nos 34 municípios que a compõe e nos 14 que compõem o Colar Metropolitano. Mais recentemente, barragens de rejeitos estão em risco de rompimento nos municípios de Itatiaiuçu (RMBH), Nova Lima (RMBH) e Barão de Cocais (Colar Metropolitano), evidenciando que esse modelo de geração de riqueza e desenvolvimento merece atenção e maior intervenção do Estado.
Denunciamos por meio dessa carta que a própria barragem de rejeitos que se rompeu no Córrego do Feijão tinha sido dada como uma barragem de baixo risco e ainda teve a ampliação de operações aprovada. Este é um exemplo de quanto o sistema de licenciamento ambiental em Minas Gerais é frágil frente às pressões dos setores envolvidos e tem sido negligenciado. Processos que deveriam ser apreciados com mais atenção pelos agentes responsáveis são aprovados com pouco rigor.
Por fim, reforçamos a disposição e compromisso do AUÊ! em somar esforços às demais iniciativas que lutam por direitos e pela defesa da vida na RMBH, fortalecendo cada dia mais a agroecologia como uma alternativa relevante, viável e compatível no nosso território. O poder público deve fazer justiça e punir os culpados e tomar as devidas providências para evitar outros crimes. Novas vidas não precisam mais ser perdidas e novos territórios não podem mais ser inundados por rejeitos minerários.